Fuzileiros escapam a oito dias de incerteza no Atlântico
"No dia 16, de manhã, tomei consciência da gravidade da situação, já que não se via terra"
recorda Manuel Franco
Oito dias à deriva no Oceano Atlântico. Quase 192 horas a bordo de um bote a que os militares chamavam "marujinho", ao sabor de um mar que podia parecer "um espelho" ou alimentar uma tormenta. Quando os fuzileiros Manuel Franco e Romão Silvestre foram encontrados, a 23 Dezembro de 1974, a sua pequena embarcação de fibra distava 160 milhas da costa angolana.
Em Dezembro de 1974, menos de um ano depois da Revolução dos Cravos, o marinheiro Manuel Franco e o cabo Romão Silvestre integravam a Companhia de Fuzileiros portugueses que guarnecia Quissanga e Pedra do Feitiço, os últimos postos activos no dispositivo de vigilância montado ao longo da margem angolana do colossal Rio Zaire, desde a foz até Nóqui. Puelo, Makala e Tridente, os demais postos entregues à Marinha, encontravam-se já desactivados. Nóqui, a poucos quilómetros da cidade portuária de Matadi, na então República do Zaire, estava a cargo do Exército.
Manuel Franco estava destacado há dois dias no posto de Pedra do Feitiço quando foi chamado a transportar uma criança de um mês, ferida na cabeça, para Santo António do Zaire, na embocadura do Rio. Daí a instantes, dois "marujinhos" - botes de fibra equipados com motores de 50 cavalos - desciam o Rio Zaire para um percurso de quase três horas. Problemas mecânicos levaram Franco e Silvestre a transferirem a criança e os seus pais para o segundo bote. Quando a sombra da noite caiu sobre os fuzileiros portugueses, a hélice do motor Mercury que impelia a embarcação deixou de funcionar. A curta distância, os militares adivinhavam já as luzes de Santo António do Zaire. Posições portuguesas no Rio Zaire
Durante a Guerra Colonial, a fronteira fluvial entre o Zaire (actual República Democrática do Congo) e Angola era controlada, no flanco português, por seis postos militares que se estendiam de Santo António do Zaire (Soyo), na Foz, até Nóqui, a quatro quilómetros da cidade portuária de Matadi: Quissanga, Pedra do Feitiço, Puelo, Makala e Tridente encontravam-se ocupados pela Marinha; o posto de Nóqui era guarnecido pelo Exército.
Em Dezembro de 1974, oito meses após a capitulação do regime em Lisboa, apenas dois dos seis postos militares montados ao longo da margem angolana do Rio Zaire (rebaptizado como Congo a partir de 1997) permaneciam activos. Quissanga e Pedra do Feitiço, o ponto de partida do bote de Manuel Franco e Romão Silvestre, estavam a cargo de uma Companhia de Fuzileiros sob a alçada do respectivo Comando de Defesa Marítima.
Com uma extensão de 4.375 quilómetros, o Rio Zaire, ou Congo, é o segundo maior curso fluvial do Continente Africano, depois do Nilo, e o nono à escala mundial. A nascente localiza-se nas montanhas do Rift. O curso atravessa o Lago Moero e tem por tributário o Tanganica. Dependente das chuvas equatoriais, o caudal chega a transportar 34 mil metros cúbicos de água para o Oceano Atlântico, a cada segundo. A corrente pode ascender, na vazante, a cerca de dez nós (dez milhas náuticas, o equivalente a 18,5 quilómetros por hora). Subir ou descer o Rio “era uma dificuldade enorme”, nas palavras de Manuel Franco.
"Era expressamente proibido navegar no Zaire durante a noite, mas eu prometi levar a criança. Ia a pensar em pedir um camuflado quando chegasse, para ir ao cinema", recorda Manuel Franco. O bote não chegaria ao destino.
"Só se via água"
A boina preta, um par de calções desportivos, uma camisola de manga curta, os botins de combate e uma espingarda automática G3 - foi com este escasso equipamento que Manuel Franco abordou à pressa, a 15 de Dezembro, o bote de intervenção, acompanhado do cabo Silvestre. O desespero com que os dois fuzileiros reagiram ao colapso do motor depressa se agudizou quando perceberam que nada podiam fazer contra a força do Zaire. Sem material de sinalização, Franco ainda tentou remar contra a corrente de vazante. Em vão.
O Rio Zaire, rebaptizado como Congo a partir de 1997, é o segundo maior curso fluvial de África, a seguir ao Nilo. O caudal, sublinha Manuel Franco, "despeja 34 mil metros cúbicos de água por segundo". Sem a propulsão do Mercury, explica o antigo operacional da Marinha, o bote era pouco mais do que "uma casca sobre a água".
"Ainda vi os holofotes de uma lancha que andava à nossa procura. Tirei o oculta-chamas e fiz umas rajadas para o ar. Vi a lancha desaparecer. No dia 16, de manhã, tomei consciência da gravidade da situação, já que não se via terra. Se tivéssemos visto terra, ainda tentaríamos remar. Mas só se via água", conta Franco.
"À pesca com a boina"
Na manhã do dia 16 de Dezembro de 1974, Manuel Franco e Romão Silvestre encontram-se à deriva no Atlântico, ao largo da costa de Angola. Sem o saberem, estão a afastar-se cada vez mais da foz, numa rota errática das correntes oceânicas que os deixará a quase 160 milhas (296 quilómetros) de Santo António do Zaire. Sem alimentos ou água potável, os fuzileiros estão confrontados com uma escolha entre duas vias. Entre a desesperança e a crença numa sorte improvável, ambos escolhem a segunda, sem nunca deixarem de pressentir o bafo da morte. A G3 de Manuel Franco será atirada ao mar para evitar "o perigo" de um esgotamento psicológico.
Os primeiros efeitos da fome são combatidos com as ruínas da vegetação que o Rio Zaire despeja no Atlântico. A seiva é espremida para aliviar a sede em crescendo. Os caules são mastigados. Sabem "a filtro de cigarro", mas, como recorda Manuel Franco, "o importante era manter o corpo a funcionar". Ao início da tarde, os homens avistam um grupo de baleias. A passagem dos animais sacode o pequeno bote.
"Ainda andei à pesca com a boina. Havia peixes à beira do barco. Com a boina de feltro na mão, tentei agarrá-los, mas não consegui", lembra Franco.
"A gente tenta o que é possível"
Ao segundo dia de desamparo, Franco e Silvestre percorrem o horizonte com os olhos cada vez mais gastos. Água. Céu. A placidez do Atlântico ao largo de Angola. A vegetação cuspida pelo Rio Zaire é um fraco paliativo para os sonhos de salsichas, fiambre, queijo, batatas fritas. Os alimentos preenchem as conversas, mas somente uma parte. Algumas ficarão para sempre vedadas por um voto de silêncio.
- Agora comia aqui umas carnes frias - lança a dada altura Manuel Franco. - Lá vem você com o raio da comida da Marinha - devolve o cabo Silvestre, que daí a horas gritará em desespero pelo nome da mulher, Esperança.
Pelas 21h00, no breu do mar, os dois homens descortinam uma luz longínqua. A ânsia da redenção, na forma de um navio que parecia suster os motores, leva os fuzileiros a recrutarem aos braços as preciosas reservas de força que ainda conservavam, apesar da magreza dos caules e das ervas. Em breve a luz - e com ela o navio, real ou imaginário - começa a afastar-se. Resta-lhes, como na véspera, a solidão da noite. Revezam-se nos turnos de sono. É preciso remover a água que se acumula no bote. É preciso patrulhar a vastidão. No dia 19 de Dezembro voltarão a adivinhar os mastros de outro navio. A camisola branca de Franco é agitada no ar. Ninguém os vê. "A gente tenta o que é possível", diz o antigo fuzileiro. Mesmo quando o possível é pouco mais do que nada.
"O bote encheu-se de água"
Ao virar da manhã do dia 18 de Dezembro, o Sol castiga os dois fuzileiros portugueses sem se deter no drama que se desenha. Franco e Silvestre recorrem às entranhas da mala que pertencia ao pai da criança transportada para Santo António do Zaire. Cobrem-se com a roupa que ali encontram, depois de molhada na água salgada. O camuflado de Romão Silvestre é abrigo para dois.
Franco e Silvestre tratam de aliviar o peso do bote. Hélices e chaves são atiradas ao mar, assim como três dos quatro depósitos de combustível de 25 litros que levavam a bordo, deixados a flutuar para servir de sinalização. Guardam apenas um depósito, "porque a ranhura, virada ao contrário, servia para captar as gotas da chuva". "Tapei com um pano para não enferrujar. Se chovesse, aquele centímetro de água era aproveitado. Ainda deu para lamber, até a saber um bocadinho a gasolina", recorda-se Manuel Franco.
Ao anoitecer, o céu faz-se espesso. Os fuzileiros despem-se e devolvem a roupa seca aos intestinos da mala. O bote é apanhado no vórtice de uma tempestade que os dois homens descrevem como um tornado. A sede desaparece. O "marujinho" sobrevive: "Até bebemos de mais, por causa do tornado que apanhámos. O bote encheu-se de água".
"Até urina provámos"
Seguem-se dois dias de quebranto. Franco faz menção de fumar os cigarros que conserva. Silvestre aconselha-o a poupar os pulmões. Combinam fumar um cigarro no momento em que sentirem o cerco da morte a cingir-lhes o peito. A 20 de Dezembro, os restos de ervas deixam de ser uma opção enquanto alimento. O sal do Oceano degrada a seiva das plantas. Os corpos ressentem-se.
Os fuzileiros decidem experimentar o sabor da própria urina, antevendo a desidratação: "Até urina provámos. Era salgada".
A tristeza começa a apoderar-se dos espíritos. Mas há também uma esperança indizível que nenhum dos homens pode precisar. "Nunca acreditei que fosse morrer ali", garante Franco. "Se tivesse acontecido no Atlântico Norte, não teríamos hipóteses. Ao largo da costa angolana, a temperatura não era má. Havia dias em que o mar era um espelho. Às vezes havia mais ondulação e algum vento. Se o bote se virasse, teríamos problemas. Tínhamos lá coletes salva-vidas, mas eram à portuguesa".
"Nunca tinha pensado em comer peixe cru"
Na madrugada do dia 21 de Dezembro, o Atlântico mostra-se generoso. O céu também. Deitado no bote, Manuel Franco é sobressaltado por uma súbita agitação. Ergue o corpo desgastado para testemunhar o estertor de um peixe voador que falhara a amaragem, caindo aos pés dos fuzileiros no interior da embarcação. Franco apressa-se a garantir que o peixe não mais regressará ao mar: "Dei-lhe duas pancadas. O peixe do mar não é salgado. As escamas, tirámo-las com a fivela da bota. Nunca tinha pensado em comer peixe cru, mas as pessoas habituam-se".
A meio da manhã, uma gaivota aterra no "marujinho". Com um pano molhado, Franco anestesia à pancada a ave marinha. "Ela não morreu", explica. "Cortei-lhe as guias das asas, mas estava lá para marchar, se fosse preciso. De reserva. Dei-lhe o nome de Salvação".
Às 6h00 do dia seguinte, a chuva volta a cair sobre os militares. Porém, é escassa e mal dá para preencher o depósito de gasolina convertido em colector. Tomado pela sede e pela cólera, o cabo Silvestre grita ao vento que estará preparado para morrer, mas só "depois de ter a barriga cheia de água". Os lábios procuram, sôfregos e retesados como cortiça, as poucas gotas de chuva que escorrem pela fibra do bote.
"Queremos viver"
Às 10h00 do dia 23 de Dezembro de 1974, os dois fuzileiros da guarnição de Pedra do Feitiço descortinam o casco vermelho de mais um navio. Remam com uma força que julgavam perdida, para logo serem travados por uma corrente traiçoeira. Desiludidos, dão descanso aos braços, pois "uma remada a mais seria um minuto de vida a menos". Franco começa a dar voz aos pensamentos, como uma última prece.
"Já no fim, disse que tínhamos de voltar à vida. Vimos baleias, passámos por um tornado, fomos ajudados com a água da chuva, um peixe que entrou no barco. E parece que me ouviram", recorda o antigo operacional da Marinha. "Quem ouviu o navio fui eu. Estava sempre à coca, pois um navio poderia passar por nós. Levantei-me e vi o navio".
Ao início da tarde, o atuneiro francês "Kersidan", da companhia Cobre Caf, avista a embarcação de Manuel Franco e Romão Silvestre. Depois de aproximar o navio do "marujinho", o comandante Michel Le Carré faz descer um bote. Os fuzileiros são levados para bordo em lágrimas. Franco recorda a primeira conversa com Le Carré: "O comandante olhou para nós e perguntou se tínhamos armas. Disse-lhe que vínhamos de Santo António do Zaire. Ficou espantado. Estávamos a cerca de 160 milhas do local de onde partíramos, já em águas do Congo-Brazzaville, e a 90 milhas da costa".
A fome é atacada com os restos do almoço da tripulação, acompanhados de grandes quantidades de água e de um xarope utilizado pelos pescadores de atum. Tudo é consumido devagar, com a humildade de quem viu a vida por um fio no imenso Oceano.
Natal de 1974
Após o resgate dos fuzileiros, a Marinha envia uma menção de apreço ao comandante. Contudo, obrigado a desviar a rota da faina para as coordenadas fornecidas pelos militares portugueses, Michel Le Carré mostra-se "um pouco incomodado". A 24 de Dezembro, Manuel Franco e Romão Silvestre são transferidos para a lancha "Vénus", da Armada. Daí a menos de quatro horas, serão recebidos em Cabinda com uma ceia de Natal. "Os barris de cerveja não chegaram".
O regresso a Santo António do Zaire dá-se a 26 de Dezembro, a bordo da lancha "Rigel". É com emoção que a Companhia de Fuzileiros número 12 acolhe Franco e Silvestre.
"Quando regressei à Pedra do Feitiço, apareceu-me o avô da criança, que era o soba local. Apresentou-me a família toda, ou seja, toda a aldeia. Arranjei ali um amigo. Também lá estava o pai da criança. Ofereceu-me duas galinhas e um cesto cheio de ovos. Deu-me também 50 escudos para ir comprar uma cerveja", recorda Manuel Franco, os olhos azuis a recuarem no tempo - a memória de lábios gretados, da vida presa a uma esperança difusa, da subida ao convés de um atuneiro, do epílogo da Guerra Colonial.
Publicada por : Carlos Santos Neves - Notícias.RTP.pt - 23/Dez/2009
Durante a Guerra Colonial, a fronteira fluvial entre o Zaire (actual República Democrática do Congo) e Angola era controlada, no flanco português, por seis postos militares que se estendiam de Santo António do Zaire (Soyo), na Foz, até Nóqui, a quatro quilómetros da cidade portuária de Matadi: Quissanga, Pedra do Feitiço, Puelo, Makala e Tridente encontravam-se ocupados pela Marinha; o posto de Nóqui era guarnecido pelo Exército.
Em Dezembro de 1974, oito meses após a capitulação do regime em Lisboa, apenas dois dos seis postos militares montados ao longo da margem angolana do Rio Zaire (rebaptizado como Congo a partir de 1997) permaneciam activos. Quissanga e Pedra do Feitiço, o ponto de partida do bote de Manuel Franco e Romão Silvestre, estavam a cargo de uma Companhia de Fuzileiros sob a alçada do respectivo Comando de Defesa Marítima.
Com uma extensão de 4.375 quilómetros, o Rio Zaire, ou Congo, é o segundo maior curso fluvial do Continente Africano, depois do Nilo, e o nono à escala mundial. A nascente localiza-se nas montanhas do Rift. O curso atravessa o Lago Moero e tem por tributário o Tanganica. Dependente das chuvas equatoriais, o caudal chega a transportar 34 mil metros cúbicos de água para o Oceano Atlântico, a cada segundo. A corrente pode ascender, na vazante, a cerca de dez nós (dez milhas náuticas, o equivalente a 18,5 quilómetros por hora). Subir ou descer o Rio “era uma dificuldade enorme”, nas palavras de Manuel Franco.
"Era expressamente proibido navegar no Zaire durante a noite, mas eu prometi levar a criança. Ia a pensar em pedir um camuflado quando chegasse, para ir ao cinema", recorda Manuel Franco. O bote não chegaria ao destino.
"Só se via água"
A boina preta, um par de calções desportivos, uma camisola de manga curta, os botins de combate e uma espingarda automática G3 - foi com este escasso equipamento que Manuel Franco abordou à pressa, a 15 de Dezembro, o bote de intervenção, acompanhado do cabo Silvestre. O desespero com que os dois fuzileiros reagiram ao colapso do motor depressa se agudizou quando perceberam que nada podiam fazer contra a força do Zaire. Sem material de sinalização, Franco ainda tentou remar contra a corrente de vazante. Em vão.
O Rio Zaire, rebaptizado como Congo a partir de 1997, é o segundo maior curso fluvial de África, a seguir ao Nilo. O caudal, sublinha Manuel Franco, "despeja 34 mil metros cúbicos de água por segundo". Sem a propulsão do Mercury, explica o antigo operacional da Marinha, o bote era pouco mais do que "uma casca sobre a água".
"Ainda vi os holofotes de uma lancha que andava à nossa procura. Tirei o oculta-chamas e fiz umas rajadas para o ar. Vi a lancha desaparecer. No dia 16, de manhã, tomei consciência da gravidade da situação, já que não se via terra. Se tivéssemos visto terra, ainda tentaríamos remar. Mas só se via água", conta Franco.
"À pesca com a boina"
Na manhã do dia 16 de Dezembro de 1974, Manuel Franco e Romão Silvestre encontram-se à deriva no Atlântico, ao largo da costa de Angola. Sem o saberem, estão a afastar-se cada vez mais da foz, numa rota errática das correntes oceânicas que os deixará a quase 160 milhas (296 quilómetros) de Santo António do Zaire. Sem alimentos ou água potável, os fuzileiros estão confrontados com uma escolha entre duas vias. Entre a desesperança e a crença numa sorte improvável, ambos escolhem a segunda, sem nunca deixarem de pressentir o bafo da morte. A G3 de Manuel Franco será atirada ao mar para evitar "o perigo" de um esgotamento psicológico.
Os primeiros efeitos da fome são combatidos com as ruínas da vegetação que o Rio Zaire despeja no Atlântico. A seiva é espremida para aliviar a sede em crescendo. Os caules são mastigados. Sabem "a filtro de cigarro", mas, como recorda Manuel Franco, "o importante era manter o corpo a funcionar". Ao início da tarde, os homens avistam um grupo de baleias. A passagem dos animais sacode o pequeno bote.
"Ainda andei à pesca com a boina. Havia peixes à beira do barco. Com a boina de feltro na mão, tentei agarrá-los, mas não consegui", lembra Franco.
"A gente tenta o que é possível"
Ao segundo dia de desamparo, Franco e Silvestre percorrem o horizonte com os olhos cada vez mais gastos. Água. Céu. A placidez do Atlântico ao largo de Angola. A vegetação cuspida pelo Rio Zaire é um fraco paliativo para os sonhos de salsichas, fiambre, queijo, batatas fritas. Os alimentos preenchem as conversas, mas somente uma parte. Algumas ficarão para sempre vedadas por um voto de silêncio.
- Agora comia aqui umas carnes frias - lança a dada altura Manuel Franco. - Lá vem você com o raio da comida da Marinha - devolve o cabo Silvestre, que daí a horas gritará em desespero pelo nome da mulher, Esperança.
Pelas 21h00, no breu do mar, os dois homens descortinam uma luz longínqua. A ânsia da redenção, na forma de um navio que parecia suster os motores, leva os fuzileiros a recrutarem aos braços as preciosas reservas de força que ainda conservavam, apesar da magreza dos caules e das ervas. Em breve a luz - e com ela o navio, real ou imaginário - começa a afastar-se. Resta-lhes, como na véspera, a solidão da noite. Revezam-se nos turnos de sono. É preciso remover a água que se acumula no bote. É preciso patrulhar a vastidão. No dia 19 de Dezembro voltarão a adivinhar os mastros de outro navio. A camisola branca de Franco é agitada no ar. Ninguém os vê. "A gente tenta o que é possível", diz o antigo fuzileiro. Mesmo quando o possível é pouco mais do que nada.
"O bote encheu-se de água"
Ao virar da manhã do dia 18 de Dezembro, o Sol castiga os dois fuzileiros portugueses sem se deter no drama que se desenha. Franco e Silvestre recorrem às entranhas da mala que pertencia ao pai da criança transportada para Santo António do Zaire. Cobrem-se com a roupa que ali encontram, depois de molhada na água salgada. O camuflado de Romão Silvestre é abrigo para dois.
Franco e Silvestre tratam de aliviar o peso do bote. Hélices e chaves são atiradas ao mar, assim como três dos quatro depósitos de combustível de 25 litros que levavam a bordo, deixados a flutuar para servir de sinalização. Guardam apenas um depósito, "porque a ranhura, virada ao contrário, servia para captar as gotas da chuva". "Tapei com um pano para não enferrujar. Se chovesse, aquele centímetro de água era aproveitado. Ainda deu para lamber, até a saber um bocadinho a gasolina", recorda-se Manuel Franco.
Ao anoitecer, o céu faz-se espesso. Os fuzileiros despem-se e devolvem a roupa seca aos intestinos da mala. O bote é apanhado no vórtice de uma tempestade que os dois homens descrevem como um tornado. A sede desaparece. O "marujinho" sobrevive: "Até bebemos de mais, por causa do tornado que apanhámos. O bote encheu-se de água".
"Até urina provámos"
Seguem-se dois dias de quebranto. Franco faz menção de fumar os cigarros que conserva. Silvestre aconselha-o a poupar os pulmões. Combinam fumar um cigarro no momento em que sentirem o cerco da morte a cingir-lhes o peito. A 20 de Dezembro, os restos de ervas deixam de ser uma opção enquanto alimento. O sal do Oceano degrada a seiva das plantas. Os corpos ressentem-se.
Os fuzileiros decidem experimentar o sabor da própria urina, antevendo a desidratação: "Até urina provámos. Era salgada".
A tristeza começa a apoderar-se dos espíritos. Mas há também uma esperança indizível que nenhum dos homens pode precisar. "Nunca acreditei que fosse morrer ali", garante Franco. "Se tivesse acontecido no Atlântico Norte, não teríamos hipóteses. Ao largo da costa angolana, a temperatura não era má. Havia dias em que o mar era um espelho. Às vezes havia mais ondulação e algum vento. Se o bote se virasse, teríamos problemas. Tínhamos lá coletes salva-vidas, mas eram à portuguesa".
"Nunca tinha pensado em comer peixe cru"
Na madrugada do dia 21 de Dezembro, o Atlântico mostra-se generoso. O céu também. Deitado no bote, Manuel Franco é sobressaltado por uma súbita agitação. Ergue o corpo desgastado para testemunhar o estertor de um peixe voador que falhara a amaragem, caindo aos pés dos fuzileiros no interior da embarcação. Franco apressa-se a garantir que o peixe não mais regressará ao mar: "Dei-lhe duas pancadas. O peixe do mar não é salgado. As escamas, tirámo-las com a fivela da bota. Nunca tinha pensado em comer peixe cru, mas as pessoas habituam-se".
A meio da manhã, uma gaivota aterra no "marujinho". Com um pano molhado, Franco anestesia à pancada a ave marinha. "Ela não morreu", explica. "Cortei-lhe as guias das asas, mas estava lá para marchar, se fosse preciso. De reserva. Dei-lhe o nome de Salvação".
Às 6h00 do dia seguinte, a chuva volta a cair sobre os militares. Porém, é escassa e mal dá para preencher o depósito de gasolina convertido em colector. Tomado pela sede e pela cólera, o cabo Silvestre grita ao vento que estará preparado para morrer, mas só "depois de ter a barriga cheia de água". Os lábios procuram, sôfregos e retesados como cortiça, as poucas gotas de chuva que escorrem pela fibra do bote.
"Queremos viver"
Às 10h00 do dia 23 de Dezembro de 1974, os dois fuzileiros da guarnição de Pedra do Feitiço descortinam o casco vermelho de mais um navio. Remam com uma força que julgavam perdida, para logo serem travados por uma corrente traiçoeira. Desiludidos, dão descanso aos braços, pois "uma remada a mais seria um minuto de vida a menos". Franco começa a dar voz aos pensamentos, como uma última prece.
"Já no fim, disse que tínhamos de voltar à vida. Vimos baleias, passámos por um tornado, fomos ajudados com a água da chuva, um peixe que entrou no barco. E parece que me ouviram", recorda o antigo operacional da Marinha. "Quem ouviu o navio fui eu. Estava sempre à coca, pois um navio poderia passar por nós. Levantei-me e vi o navio".
Ao início da tarde, o atuneiro francês "Kersidan", da companhia Cobre Caf, avista a embarcação de Manuel Franco e Romão Silvestre. Depois de aproximar o navio do "marujinho", o comandante Michel Le Carré faz descer um bote. Os fuzileiros são levados para bordo em lágrimas. Franco recorda a primeira conversa com Le Carré: "O comandante olhou para nós e perguntou se tínhamos armas. Disse-lhe que vínhamos de Santo António do Zaire. Ficou espantado. Estávamos a cerca de 160 milhas do local de onde partíramos, já em águas do Congo-Brazzaville, e a 90 milhas da costa".
A fome é atacada com os restos do almoço da tripulação, acompanhados de grandes quantidades de água e de um xarope utilizado pelos pescadores de atum. Tudo é consumido devagar, com a humildade de quem viu a vida por um fio no imenso Oceano.
Natal de 1974
Após o resgate dos fuzileiros, a Marinha envia uma menção de apreço ao comandante. Contudo, obrigado a desviar a rota da faina para as coordenadas fornecidas pelos militares portugueses, Michel Le Carré mostra-se "um pouco incomodado". A 24 de Dezembro, Manuel Franco e Romão Silvestre são transferidos para a lancha "Vénus", da Armada. Daí a menos de quatro horas, serão recebidos em Cabinda com uma ceia de Natal. "Os barris de cerveja não chegaram".
O regresso a Santo António do Zaire dá-se a 26 de Dezembro, a bordo da lancha "Rigel". É com emoção que a Companhia de Fuzileiros número 12 acolhe Franco e Silvestre.
"Quando regressei à Pedra do Feitiço, apareceu-me o avô da criança, que era o soba local. Apresentou-me a família toda, ou seja, toda a aldeia. Arranjei ali um amigo. Também lá estava o pai da criança. Ofereceu-me duas galinhas e um cesto cheio de ovos. Deu-me também 50 escudos para ir comprar uma cerveja", recorda Manuel Franco, os olhos azuis a recuarem no tempo - a memória de lábios gretados, da vida presa a uma esperança difusa, da subida ao convés de um atuneiro, do epílogo da Guerra Colonial.
Publicada por : Carlos Santos Neves - Notícias.RTP.pt - 23/Dez/2009
Publicada por : Carlos Santos Neves - Notícias.RTP.pt - 23/Dez/2009
Se, enfim, recordar é viver
ResponderEliminarE, vivendo tais recordações,
Alia-se a este irónico padecer
A mágoa em nossos corações...
E, além de Marinheiros
Nesta turbulenta odisseia,
São orgulho dos Fuzileiros
Os jovens desta epopeia
Nos seus brados de angústia
Do seu heróico historial
Tiveram na bravura a astúcia
De honrar sempre Portugal...
Um abraço a todos os Fuzileiros, do
Ex-Cabo Fuzileiro/Verde 8163
De honrar sempre Portugal
ResponderEliminarDiz o Verde e eu também
Numa odisseia sem igual
Que quis Deus acabou bem!